sábado, 12 de junho de 2010

Émile Durkheim - O QUE É UM FATO SOCIAL?

Do livro: As regras do Método Sociológico.

Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber
quais fatos chamamos assim. A questão é ainda mais necessária porque se utiliza
essa qualificação sem muita precisão. Ela é empregada correntemente para
designar mais ou menos todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade,
por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social.

Mas, dessa maneira, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não
possam ser chamados sociais. Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a
sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente.
Portanto, se esses fatos fossem sociais, a sociologia não teria objeto próprio, e
seu domínio se confundiria com o da biologia e da psicologia. Mas, na realidade,
há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem
por caracteres definidos da queles que as outras ciências da natureza estudam.
Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, quando
executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos,
fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de
acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade
deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os recebi pela
educação. Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das
obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o
Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenças e as práticas
de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas
existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo
para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar
minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações
comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc. funcionam
independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os
membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a
propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de
sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das
consciências individuais.

Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao
indivíduo, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em
virtude da qual se impõem a ele, quer ele queira, quer não. Certamente, quando
me conformo voluntariamente a ela, essa coerção não se faz ou pouco se faz
sentir, sendo inútil. Nem por isso ela deixa de ser um caráter intrínseco desses
fatos, e a prova disso é que ela sê afirma tão logo tento resistir. Se tento violar as
regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em
tempo, ou para anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal, se tiver sido
efetuado e for reparável, ou para fazer com que eu o expie, se não puder ser
reparado de outro modo. Em se tratando de máximas puramente morais, a
consciência pública reprime todo ato que as ofenda através da vigilância que
exerce sobre a conduta dos cidadãos e das penas especiais de que dispõe. Em
outros casos, a coerção é menos violenta, mas não deixa de existir. Se não me
submeto às convenções do mundo, se, ao vestir-me, não levo em conta os
costumes observados em meu país e em minha classe, o riso que provoco, o
afastamento em relação a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os
mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coerção, mesmo
sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. Não sou obrigado a falar francês
com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas é impossível agir
de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidade, minha tentativa
fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me proíbe de trabalhar com
procedimentos e métodos do século passado; mas, se o fizer, é certo que me
arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa libertar-me dessas regras e violá-las com
sucesso, isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar contra elas. E ainda
que elas sejam finalmente vencidas, demonstram suficientemente sua força
coercitiva pela resistência que opõem. Não há inovador, mesmo afortunado, cujos
empreendimentos não venham a deparar com oposições desse tipo.
Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais:
consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e
que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se
impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os
fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com
os fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na consciência individual e
através dela. Esses fatos constituem, portanto uma espécie nova, e é a eles que
deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Essa qualificação lhes
convém; pois é claro que, não tendo o indivíduo por substrato, eles não podem ter
outro senão a sociedade, seja a sociedade política em seu conjunto, seja um dos
grupos parciais que ela encerra: confissões religiosas, escolas políticas, literárias,
corporações profissionais, etc. Por outro lado, é a eles só que ela convém; pois a
palavra social só tem sentido definido com a condição de designar unicamente
fenômenos que não se incluem em nenhuma das categorias de fatos já
constituídos e denominados. Eles são, portanto o domínio próprio da sociologia. É
verdade que a palavra coerção, pela qual os definimos, pode vir a assustar os
zelosos defensores de um individualismo absoluto. Como estes professam que o
indivíduo é perfeitamente autônomo, julgam que o diminuímos sempre que
mostramos que ele não depende apenas de si mesmo. Sendo hoje incontestável,
porém, que a maior parte de nossas idéias e de nossas tendências não é
elaborada por nós, mas nos vem de fora, elas só podem penetrar em nós
impondo-se; eis tudo o que significa nossa definição. Sabe-se, aliás, que nem toda
coerção social exclui necessariamente a personalidade individual.

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