quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Uma reflexão sobre ser criança e (não) ter infância

Assisti esses dias o documentário "A invenção da infância" e fiquei pensando em como nós professores estamos conduzindo nossos alunos a pensarem a respeito de si mesmos. Nós os permitimos ser crianças? Incentivamos a curtirem a sua infância, ou "enfiamos" em suas cabecinhas que já devem pensar e agir de forma que seus futuros seja promissores e de retorno financeiro?  Vendo aquelas crianças que levam a vida tão a sério percebi que , realmente ser criança não significa ter infância. 
Tentarei descrever, de forma breve, como foi minha infância e o início de minha vida escolar. Espero ser sucinta, já que lembro de muitas coisas, tanto boas quanto ruins que sei que foram resolutas para quem sou hoje, tanto pessoal como profissionalmente.

Minha mãe me teve com quarenta anos e sou a 10ª filha, porém, tenho sete irmãos vivos. Antes de eu nascer meus pais perderam 3 filhos ainda recém-nascidos antes de virem do Ceará para o Gama DF.  (Se você assistiu o documentário sabe porque detalhei isso)  Nasci no Antigo Hospital de Base em BSB e a diferença entre meu irmão mais velho e eu é de vinte anos, portanto, fui muito mimada com presentes nas datas comemorativas e tive uma educação e disciplina que não vieram somente de meus pais. Minha infância foi divertida e muito agradável. Pude curtir todos os benefícios que crianças de minha idade, com uma família grande poderia ter. Assim como, pelo fato de ser criança meio a irmãos adultos, também acabei tendo experiências de adulto, como cuidar de sobrinhos com pouca diferença da minha idade por exemplo. Com seis anos já trocava fraldas e dava banho nos filhos de meus irmãos, mas achava tudo muito divertido, pois brincava de ser mamãe deles. Só me sentia responsável mesmo, ou, como diria, tendo alguma obrigação, quando um de meus irmãos ou cunhados me pediam para lavar seus tênis por alguns trocados. (risos)

Embora o fato de ser de uma família numerosa seja algo em comum com as crianças no documentário “A invenção da infância[1]”, percebi que fui uma criança bem diferente de qualquer uma apresentada. As crianças do Sertão da Bahia conhecem uma realidade contrária a minha infância. Desde cedo sentem o peso da responsabilidade de contribuir financeiramente com a família e perderam a essência de infância no sentido do brincar e mesmo do aprender brincando. O aprender delas consiste em saber como prender bem sisais na mula para chegar sem cair no local da moenda, ou como centralizar uma pedra meio ao aro para quebrar em pedaços menores. Assistindo pela segunda vez fiquei pensando em o que se passava pela suas cabeças no caminho entre local da colheita do sisal e a máquina de moer, ou, entre uma pedra e outra que colocavam para bater até despedaçar. Será que com as pedras brincam de ser um astronauta que pegaria pedras lunares? Ou imaginavam que o sisal é o alimento do monstro que eles como heróis deveriam derrotar? Mas quando prestei atenção no silêncio durante o trabalho, fiquei emocionada. Diversão infantil não combina com quietude. As vozes, os olhos assisados e as testas enrugadas sem sorrisos me tiraram a dúvida de que realmente não aprenderam a ser criança com imaginação para se divertirem. Mesmo aquelas em São Paulo.

A alguns anos, crianças com 10 anos tinham a casa da Barbie ou bonecos da Playmobil, barbante para brincar de cama de gato ou um saquinho de bolinhas de gude. Tínhamos tempo para brincar. Hoje, antes mesmo de chegar a essa idade, já não tem mais bonecas ou carrinhos, substituídos pelo computador, tablets ou celular com recursos inesgotáveis e se preparam para um futuro de estabilidade financeira e acadêmica. As meninas já não mais se ocupam em brincar de dar comidinha para o bebê, nem pensam em ter um bebê,mas em se formar, ter um trabalho rentável e adquirir bens que garantam o consumismo. Seria superficial se dissesse que isso é importante sim, mas de forma equilibrada ao incentivo a uma busca de realização pessoal, um casamento e uma família estruturada.  A idade de viver a infância a cada geração tem diminuído por horários de tarefas como curso de idioma, esporte, dança e televisão ou vídeo games. E as crianças de São Paulo apresentadas no documentário ainda eram da década de 90. Hoje isso é bem mais acentuado nas cidades embora no sertão da Bahia e em vários outros estados as crianças ainda vivam a mesma realidade das que vimos, ou ainda pior, já que educação para a maioria delas, embora seja um sonho, não é a prioridade.

Minha vida poderia ter sido bem parecida caso meus pais não tomassem a decisão de vir para o DF.  Não aprendi a ler logo como as crianças de minha idade aprendiam. Tive muitas dificuldades em juntar as sílabas e perceber a fonética. Com sete anos ainda não sabia ler, mas tive uma professora que marcou minha vida. Ela se chamava Sandra Claret e eu a admirava muito. Vivia a imitando. Acredito que tinha no máximo uns 23 anos e os cabelos compridos e encaracolados era o que eu mais admirava nela. Um poço de paciência e doce de pessoa. Como não conseguia acompanhar a turma na leitura, ela me desafiava. Me dava pequenos textos para ler em casa e dizia que se lesse para ela em sala no outro dia, me daria desenhos impressos para pintar, porque pintar era o que eu mais gostava de fazer. Quando li a primeira palavra da minha vida (já-ca-ré), no outro dia, ela fez uma festa na sala, trouxe balinhas pipoca, doces para comemorar por toda a sala estar alfabetizada. Depois disso, ela passou a me dar revistas em quadrinho para ler em casa (menos a do Chico Bento, pois dizia que por ele também ainda não saber ler muito bem, eu não aprenderia muito bem, mas na verdade é que as palavras eram escritas como ele falava, ou seja, sem a grafia correta). Aprendi a ler com uma pessoa que passou a ser meu ídolo. Ela não deixava que meus colegas zombassem de mim e os incentivava a me ajudarem. No final daquele ano, eu fiz uma apresentação para toda a escola lendo o juramento da formatura do pré-escolar. Mas, infelizmente a professora Sandra não chegou a ver, devido a um acidente no mês de outubro, quando voltava de um churrasco para comemorar o noivado no Zoológico de Brasília, um homem bêbado invadiu a contramão e bateu no carro em que ela e o noivo estavam. Ela faleceu três dias depois. Lembro que fui ao velório na igreja de São Pedro no Setor P Sul da Ceilândia. Não tenho muitas lembranças dos anos seguintes mas sei que reprovei a 2ª série. Por isso, acredito que minha paixão por educação, professora, venha de meus anos escolares iniciais. Não fui inspirada ou incentivada pela família como deveria, mas a professora que me alfabetizou causou um grande impacto na minha aprendizagem.

A aprendizagem fica mais gostosa quando a associamos a algo que gostamos. E, mesmo adultos, ainda gostamos de brincar.

Que nós professores pensemos nisso. Temos crianças que precisam ser crianças a seu tempo. Ao invés de na primeira aula de educação infantil perguntarmos "O que você que ser quando crescer?" escolhamos questionar " De que vocês querem brincar depois de nossa tarefinha?" e deixemos que cada um ,a seu tempo, alcancem o êxito da aprendizagem e desenvolvimento através de nossa mediação.

Um grande Abraço.
Clara Leandro.


Assista o documentário acessando: http://portacurtas.org.br/filme/?name=a_invencao_da_infancia


[1] INVENÇÃO da Infância, A. Direção: Liliana Sulzbach. M. Schmiedt Produçõe.s Porto Alegre – RS, 2000. 26 min. Son, Color, Formato: 16 mm.